“Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem”. Talvez você não conheça essa frase, nesses termos, que foi registrada lá em 1500, na “Carta de achamento do Brasil”, chamada também de “Carta de Caminha”, mas provavelmente já ouviu dizer que “no Brasil, em se plantando tudo dá”, uma ideia que é derivada dos dizeres do escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral. De lá pra cá, essa máxima de ser o Brasil uma terra de abundância foi repetida muitas vezes, de muitas formas. Mas abundância do quê? E pra quem? Que itens dessa terra capaz de proporcionar tanta fartura chegam na mesa da população? Quantas culturas vão parar no nosso prato? Se a gente pensar na comida cotidiana, alguns dos ingredientes da despensa têm destaque, em especial dois grãos, que vão do famoso prato feito, o “PF”, até preparações requintadas, como os italianos risotos, ou regionais, como os baiões de dois. Isso mesmo, estamos falando deles, dois alimentos versáteis, cheios de sabor e história, e que também foram objetos de reflexão através da arte: o arroz e o feijão. De uma breve história sobre a aparição desses dois ingredientes na mesa do brasileiro, veremos o nascimento dos grãos, transformados, pelas mãos de Anna Maria Maiolino, e de seu diálogo com a abundância agroflorestal no trabalho de Jorge Menna Barreto, em obras que foram expostas em diferentes edições da Bienal – é esse o cardápio de hoje.
Pilares do “santo prato”
É verdade que a presença do arroz como base alimentar está longe de ser uma exclusividade brasileira: ele ocupa esse lugar no prato de dois terços da população mundial, sobretudo nos espaços em que essa cultura – nas variedades “branco” e “vermelho” – está estabelecida há milênios, tanto em diferentes espaços da Ásia quanto nas regiões do centro-oeste do continente africano. Mesmo o feijão, ou melhor, os feijões, compõem mesas mundo afora, em preparos mais ou menos caldosos, com grãos soltinhos, em pastas ou bolinhos, com certo protagonismo. Agora, essa prática de apresentá-los como par – um par considerado perfeito nutricionalmente!¹ – e como comida do dia a dia, isso podemos dizer ser coisa nossa, ainda que essa junção seja mais ou menos recente na nossa história.
O arroz, Oryza sativa, reúne certo consenso sobre sua domesticação, quer dizer, o entendimento do processo de sua reprodução e seu plantio pelos humanos, às margens do chamado “Rio Azul”, o Yang-Tsé, na atual China, há pelo menos 8 mil anos. Para chegar por aqui, percorreu um longo trajeto no tempo e espaço: foi cultivado na Ásia, comercializado por rotas que cortavam aquele continente, em sua maioria conduzidas pelos árabes, conhecido na Europa a partir da venda e do consumo em espaços conquistados, como a Al-Andalus, no que hoje é parte da Península Ibérica – onde fica Portugal, que colonizou parte da América – e, já em 1587, encontramos notícias das primeiras tentativas de introdução de sua lavoura na Bahia. E levaria ainda algum tempo até que essa plantação, de fato, se estabelecesse e ganhasse mais difusão e importância nos trópicos, já que as notícias mais constantes e consistentes sobre os campos alagados característicos dos arrozais aparecem no século 19.
Ainda que essa variedade, “branca”, tenha se tornado a mais difundida no prato feito brasileiro, é interessante notar que outro de seus “tipos”, o Oryza glaberrima, também chamado de “arroz vermelho” ou “arroz da terra” – cuja domesticação se deu na África ocidental há 3 mil anos atrás –, teve papel importante em mesas do passado. Desembarcado no duro e longevo processo de escravização que deu contornos e cicatrizes profundas na nossa formação, esse arroz foi cultivado em grandes quantidades, sobretudo no Maranhão, até 1772, quando seu cultivo foi proibido.
Já os feijões possuem uma origem pouco precisa, pois suas variantes – entre elas as de denominação Phaseolus e Vigna – são consumidas por populações de diferentes partes do globo desde a Antiguidade. Na América, registros apontam sua presença nas regiões correspondentes aos atuais Peru e México entre 5 mil e 9 mil anos antes de Cristo. Além da afinidade com o clima, a durabilidade e facilidade para o transporte fizeram do feijão item frequente entre as tralhas transportadas pelos tropeiros durante o período colonial. Apesar de conhecidos de longa data, os feijões, assim como este território, também se transformaram. E isso muito depois de o Brasil ter sua emancipação política, ter virado Império, República ou declarado o fim da escravidão. Foi só em meados da década de 1970 que uma de suas variedades mais consumidas no Brasil hoje – o feijão-carioca, ou o carioquinha para os íntimos, – foi pela primeira vez notada por sua capacidade produtiva e teve seu cultivo sistematizado. E seria preciso ainda alguns anos para esse tipo tomar o lugar de seus concorrentes e fazer o célebre par com o arroz.
E isso também não faz tanto tempo assim… Foi só no fim do século 19 que esses dois ingredientes que eram geralmente consumidos em receitas distintas começaram a ser juntados no prato. A disseminação dos arrozais deixou mais acessível o grão branco que, junto com o feijão já cozido por aqui há muito tempo, garantia a satisfação da fome de forma fácil e também barata. Foi por isso que, no início do século 20, comer arroz junto com feijão era considerado um alimento popular, muitas vezes referido como “prato de pobre”, e por isso desvalorizado.

Foi apenas nas décadas de 1940 e 1950, com a junção entre o nacionalismo e o ingresso das massas dentro de um discurso político-cultural – de que Getúlio Vargas, presidente do Brasil entre 20 de julho de 1934 e 29 de outubro de 1945, depois entre 31 de janeiro de 1951 e 24 de agosto de 1954, é uma de suas maiores expressões – é que o arroz com feijão passou a ser afirmado como a comida nacional. De “comida de pobre”, foi alçado ao posto de prato típico do brasileiro – o “santo prato de cada dia”.


Semeando o prato, resgatando raízes
Mas esses alimentos não ficaram restritos à nossa história, ao nosso prato e aos discursos identitários em torno dele.
Idealizada em 1979 e montada novamente na 29ª Bienal, intitulada Há sempre um copo de mar para um homem navegar, em 2010, a obra Arroz e feijão, de Anna Maria Maiolino, é riquíssima em provocações que nos fazem refletir sobre nosso passado e nosso presente. Maiolino expõe, sobre uma mesa de jantar preta, pratos brancos com terra em que germinam os dois grãos essenciais. Em sua primeira montagem, em plena Ditadura Militar, havia duas outras mesas no cômodo, com pratos vazios para que, em apenas uma delas, um terço dos presentes participasse da obra efetivamente, comendo arroz com feijão – uma representação da diminuta fração da população mundial com acesso à alimentação básica. Durante a refeição, discutia-se sobre o que a obra suscitava de reflexão sobre o Brasil. Tudo isso ao redor da mesa central assume um papel dual, pois figura como espécie de catafalco num arranjo quase funerário, mas que também evoca a ressurreição daqueles alimentos, daquele povo, daquela terra. “A semente resiste, […] ela rebrota em qualquer situação, muitas vezes até inóspitas”, diz a artista em entrevista para a Sesc TV em 2011.
Era fundamental, para Maiolino, fazer refletir sobre “como a vida persiste apesar de; […] como é importante se alimentar da sua própria cultura, da sua própria terra; como é importante voltar a certas origens”. Pois arroz e feijão se tornaram, como vimos, alimentos básicos do povo brasileiro, e também de outros que compõem a América Latina. “Tirando os argentinos”, destaca ela.
Em 2003,² numa nova montagem no Rio de Janeiro, foi agregado à obra o vídeo de uma boca que mastiga diversos alimentos incessantemente – uma nova representação da fração reduzida dos que comem –, também apresentado na Bienal, onde o cômodo foi preenchido com pratos vazios em prateleiras lineares paralelas à mesa central, ampliada.

Outro trabalho que expande essa ideia e toca em pontos similares aos de Arroz e feijão, de Maiolino, que podem ser remontados às palavras de Caminha há mais de cinco séculos, é Restauro, de Jorge Menna Barreto. Parte da 32ª Bienal, Incerteza viva, de 2016, é uma obra que, como um restaurante, fornece alimentos aos visitantes do pavilhão. Através das diferentes acepções da palavra “restauro” – na arte e na agricultura, mas não só –, explicita a relação entre a comida que ingerimos e as consequências de seu sistema produtivo, por colocar um modelo de produção de alimentos em evidência e integrar diretamente os espectadores da montagem como comensais.
Enquanto são alimentados pelas refeições preparadas com ingredientes, boa parte de origem nativa, distantes do “convencional”, provenientes de sistemas agroflorestais, os visitantes se tornam parte da obra, absorvendo seus estímulos através do paladar e do aparelho digestivo. Tais estímulos são arquitetados a fim de contrastarem os ambientes resultantes, por um lado, da monocultura, e de outro, da agrofloresta – como, por exemplo, a reprodução, enquanto se come, de sons captados em cada um desses contextos. Uma obra que advoga em prol da desinternacionalização do gosto, da atenção ao que frutifica nas terras daqui – e que sempre frutificou, desde muito antes da colonização portuguesa –, a ser valorizado e cultivado de forma sustentável.

Vale lembrar que a agrofloresta é um sistema de produção agrícola teorizado entre os anos 80 e 90 do século 20, tendo como base o conceito de “agricultura sintrópica’, desenvolvido pelo pesquisador e agricultor suíço Ernst Götsch, a partir de seus experimentos e atuação em uma fazenda no estado da Bahia. Apesar da elaboração recente dessas definições, e da sistematização das técnicas de intervenção, o sistema agroflorestal remete a formas ancestrais de se extrair alimento da terra, em que a relação entre humano e meio ambiente se estabelece não como uma relação entre dominante e dominado, mas a partir de uma integração sustentável em que uma variedade de espécies interage a fim de alcançar um estado de equilíbrio. Esses dois modelos de produção alimentar mobilizam concepções formadas a respeito do nosso passado para repensarmos a forma como lidamos com a ocupação e exploração da terra.
No campo, na mesa, na tela e no pavilhão
Ao passear por essa breve retrospectiva histórica sobre o arroz e feijão, e pelo que suscitam as obras de Maiolino e Menna Barreto, podemos dizer que o Brasil é e sempre foi, desde antes de Cabral e Caminha, uma terra virtuosa, mas cuja virtude nem sempre foi amplamente desfrutada em proveito nem esteve ao alcance de todos os que nela viveram e vivem. Vemos, também, que o que consideramos “natural”, de todo dia, é fruto de transformações ocorridas ao longo do tempo, transformações decorrentes de vários processos que nos contam muito sobre nosso passado. A história e a arte alimentam nossas ideias e nossos sentidos, e nos levam, inclusive, a pensar e agir sobre o que fazemos de mais básico e cotidiano, como comer – o quê, quanto, quando, como, porquê –, e as implicações disso, ontem, hoje e amanhã. Dos sistemas produtivos à natureza daquilo que chega – ou não – aos nossos pratos, carregado de significados identitários, culturais, econômicos e históricos. Se se plantando tudo dá, que tipo de cultura(s) a gente vai escolher cultivar e reproduzir?
¹ “Exemplos de combinações de alimentos de origem vegetal que se complementam do ponto de vista nutricional são encontrados na mistura de cereais com leguminosas”.Leia mais no Guia Alimentar para a População Brasileira, disponível em www.fsp.usp.br/nupens/wp-content/themes/nupens/assets/pdf/guia-alimentar-para-a-populacao-brasileira.pdf
² Na mesma entrevista citada, Maiolino refere-se à adição do vídeo em 1997, em montagem no Paço Imperial, contudo, ela ocorreu no centro cultural carioca apenas em 2003.
Sobre os autores
O Comer História é um projeto de divulgação científica, produção, pesquisa e história pública desenvolvido por três historiadores que se dedicam, há mais de quinze anos, a diversos temas voltamos para produção, consumo e práticas voltadas aos alimentos, às bebidas, ao meio ambiente e ao cuidado com os corpos. São eles: Ana Carolina Viotti, doutora em História (UNESP/Franca) e docente da UNESP/Marília; Gabriel Ferreira Gurian, doutor em História (UNESP/Franca) e Rafael Afonso Gonçalves, doutor em História (UNESP/Franca) e docente da UNICENTRO (Guarapuava-PR).